Wednesday, November 04, 2020

Julgamento aos independentistas galegos, policiamento da dissidência

Julgamento aos independentistas galegos, policiamento da dissidência | Ollaparo



O julgamento de doze ativistas galegos pró-independência  foi visto para sentença na Audiencia espanhola, onde teve lugar ontem a última sessão. O ministério público (a fiscalia) mantém a maioria das acusações e pede penas de quatro a doze anos de prisão para membros do grupo anti-repressão Ceivar e a plataforma pelo direito à autodeterminação Causa Galiza. Ele os acusa de supostos crimes de exaltação do terrorismo e de pertença a uma organização criminosa. Das acusações iniciais, retirou apenas o crime de exaltação de três pessoas, e continua exigindo a dissolução de ambas as entidades. De acordo com o ministério público, estas organizações pró-independência têm ligações com  Resistência Galega, uma alegada quadrilha armada que não causou nenhuma morte, que não reclama ninguém e foi considerada a única organização terrorista ativa em Espanha nos últimos anos. anos. Desde o soberanismo galego a sua existência é questionada ou negada.

Apesar de julgar a exaltação do terrorismo, os atos e declarações que foram mostrados durante o processo não parecem exigir ou exibir violência, nem fazem qualquer referência explícita a qualquer organização armada em concreto. De facto, a maior parte das provas apresentadas para tentar provar os dois crimes tem a ver com o apelo a passeatas nas prisões, recepções e parabéns por aniversários a presos pró-independência, excertos de documentos das organizações que forma declarados legais, conteúdos publicados nos seus próprios sites e redes sociais – analisadas com pesquisas prospectivas – e, sobretudo, na organização de um evento realizado no Dia da Galiza Combatente. A acusação considera que esta celebração comemora o papel de dois membros duma quadrilha armada ativa décadas atrás – o Exército Guerrilheiro – que morreram ao colocar um artefeito explosivo em discoteca o ano 1990. No entanto, a defesa lembra que é uma data dedicada à memória histórica e que data do século XIX. Os atos, declarações e apelos analisados ​​foram públicos, realizados em plena luz do dia, com a correspondente autorização da delegação do governo espanhol e sem necessidade de qualquer tipo de intervenção policial.

Mas, acima de tudo, pode-se dizer que o grande protagonista do julgamento foi o magistrado Félix Alfonso Guevara. Com um tom de voz arrogante e agressivo, com sarcasmo e sem peneira,os, tem apupado a todos: da tradutora ao fiscal, aos depoimentos dos policiais. Mas os momentos mais óbvios de tensão foram quando  falou aos advogados de defesa, que constantemente interrompia e vetava muitas perguntas. As defesas exigiram a sua recusa porque este mesmo juiz presidu o tribunal que considerou provada a existência da Resistência Galega.

O juiz Alfonso Guevara teima no mesmo na última intervenção do julgamento até criar um espetáculo público da criminalização do movimento independentista galego:

-… isso deixa clara a natureza do julgamento e a acusação feita contra nós. Tentar explicar a um inquisidor …
-Retire-se, retire-se. Está acabado. Acaba de chamar-me a mim e ao promotor inquisidores, e isso é um excesso de liberdade, até de defesa.
-“Protesto.”
-“O que tem que protestar? Retire-se.

Perguntas insistentes sobre a solidariedade com os presos

As declarações dos agentes e o relatório da fiscalia insistem muito nas tarefas de apoio e assistência aos presos pró-independência do grupo anti-repressão Ceivar. Na verdade, um dos investigadores aponta a solidariedade com os prisioneiros como parte da suposta trama: “Uma das dinâmicas integrantes é que o prisioneiro não

Mas, acima de tudo, pode-se dizer que o grande protagonista do julgamento foi o magistrado Félix Alfonso Guevara. Com um tom de voz alto e agressivo, com certo sarcasmo e sem muitos filtros, ele vaiou a todos: do tradutor ao promotor, aos depoimentos dos policiais. Mas os momentos mais óbvios de tensão foram quando ele se dirigiu aos advogados de defesa, que constantemente interrompiam e vetavam muitas perguntas. As defesas exigiam a sua recusa porque este mesmo juiz havia presidido ao tribunal que considerou provada a existência da Resistência galega.

Perguntas insistentes sobre a solidariedade com os presos
Os depoimentos dos agentes e a história do Ministério Público insistem muito nas tarefas de apoio e assistência aos presos pró-independência do grupo anti-repressão Ceivar. De facto, um dos investigadores aponta a solidariedade para com os reclusos no âmbito da alegada trama: ‘Uma das dinâmicas integrantes é que não falta solidariedade ao recluso, que ninguém sente falta de o visitar. […] Eles têm que promover para que as pessoas de fora saibam em que prisão eles estão e escrevam para eles ‘.

O Ministério Público tentou mostrar ao tribunal que Ceivar prestou serviços e só teve conivência com presos condenados por pertencer à Resistência Galega, enquanto os arguidos têm insistido que esta solidariedade se estende a todos os presos da independência galega em geral, sem julgamento de valor contra os primeiros, porque não acreditam na existência da banda armada. Mas o promotor tem insistido na suposta colaboração apenas com os primeiros presos, quase sem ouvir a história dos presos.

Criminalização de moços e advogados pró-independência
A certa altura do julgamento, um dos investigadores divulgou um comunicado em que parece fazer uma generalização contra o jovem galego pró-independência, que considera necessariamente violento:

—A maior parte da assistência de Ceivar está em prisioneiros que cometeram atos violentos, sem negligenciar aqueles que cometeram uma ofensa administrativa grave. Eles também estão ajudando um jovem ativista radical pró-independência que não planta uma bomba porque não tem os meios para isso, mas ele pinta uma janela em um banco.
—O conceito de “independência radical” está nos documentos de Ceivar ou é um conceito de inteligência?
“É um conceito de inteligência.”

Usam Ceivar para divulgar depoimentos do grupo de prisioneiros da Resistência Galega?
—Não existe grupo de prisioneiros da Resistência Galega, é uma calúnia. O grupo de reclusos a que provavelmente se refere é o Grupo de Prisioneiros Independentistas Galegos, fundado por pessoas que nunca foram acusadas de pertencer a nenhuma organização armada.

Depois de alguns minutos, espeta:

—Sabe que são as letras CPIG?
– Sim, eu já o disser antes, o Coletivo de Prisioneiros Independentistas Galegos.
– E então, existe um grupo de presos galegos ou não?

 

Saudações de aniversário ou um sinal de “prisioneiros da liberdade”, parte da investigação

Algumas imagens que fazem parte da investigação mostram militantes segurando cartazes parabenizando prisioneiros por seus aniversários, bem como um pôster da liberdade de ‘prisioneiros independentistas’. Imagens aparentemente normais que o promotor usa para interrogatório:

-“Parabéns, Teto.” O que essas fotos têm a ver?
– Foram feitos porque era aniversário do Teto, um prisioneiro político galego.
—É um evento convocado pelo Ceivar, para Causa Galíza…?
-Como? [Risos] Não, o cartaz foi levado para tirar fotos e parabenizar o Teto por seu aniversário.
-“Quem é Teto?”
-“Repito, um prisioneiro político galego.”

 

Exaltação do terrorismo a partir de referências “implícitas”
Quando os agentes explicam o que pode constituir a exaltação do terrorismo, muitas vezes repreendem expressões vagas, que não fazem um apelo explícito à violência, nem celebram ou justificam nenhum ato terrorista, nem depreciam qualquer vítima. Por exemplo, ‘lutar é a única forma’ ou ‘combatentes galegos’. Por vezes também se fala duma alegada exaltação do terrorismo por alegadas referências à Resistência galega que não são explícitas:

—Quando falamos de ‘combatentes galegos’ falam implicitamente da Resistência Galega. Abonda olhar para todos os comunicados e documentação interna que fizeram para ver que se referem aos membros da Resistência Galega como ‘combatentes galegos’.
“Mas isso é uma dedução dele.”
—Uma dedução lógica e empírica.

Da mesma forma, outro investigador, durante o interrogatório, responde ao advogado falando sobre ‘organizações ilegais como a dele’. ‘Nada pode ser dito sobre , da Causa Galícia, porque você está procurando estruturas opacas’, diz ele. Quando o advogado protesta contra a referência aos advogados como se fizessem parte da rede, o juiz se irrita:

—Senhor, protesto contra a referência aos advogados como ‘ustedes’, dentro das referências ao entramado
—Não ,primeiro, o protesto acabou! Não! Não há nenhum protesto aqui. Há apenas um protesto na lei, para efeito de cassação, para a negação de prova ou questionamento. E não diga não! Quando ele disse ‘usted’,  não estava se referindo a advogados. Ele empregou um majestático ‘usted’. […] Quem se sentir aludido… eu não sei … eu não senti alusão”.

 

Outro mitim não! _ O juiz interrompeu

O juiz interrompe e veta muitas perguntas da defesa – em algum momento antes de serem feitas – argumentando que os policiais não estão lá para avaliar se o conteúdo do que está sendo analisado é criminoso ou não:

-“Que comportamento exaltante …?”
-A testemunha não deve contar que comportamento, o tribunal terá que dizê-lo!
-Senhor, mas essa defesa precisa conhecer qual conduta lhes é atribuída nesses atos …
-Não responda! A sala vai ver ...

Moncho Reboiras:vítima do regime de Franco, transformado em terrorista

Quando, em momentos distintos, dois investigadores tentam explicar porque é que os actos em análise glorificam o terrorismo, falam das referências dos arguidos a Moncho Reboiras, militante da União do Povo Galego assassinado pela polícia em 1975 e considerado vítima do regime de Franco. Tanto é que até mesmo um dos advogados de defesa o sublinha.

Essas interrupções também são feitas nas alegações finais de alguns réus. Por exemplo, quando Joam Peres explica sua prisão, denuncia o julgamento e afirma ser um ativista pró-independência, o juiz o interrompe e exige que ele pare:

– Em 30 de outubro, há quase cinco anos, recebi a visita de trinta ou quarenta agentes da Guarda Civil em minha casa. Bateram na porta, entraram com extrema violência e apontaram na minha cabeça. Chamaron-me de “filho da puta” algumas vezes e pisaram na minha cabeça. […] Fui levado a Tres Cantos e interrogado, o que me pareceu esperpèntico, perguntando quem carregava redes sociais e páginas da web. […] Falar dessa atividade como terrorista seria impensável em qualquer país que se queira chamar de democrático. […] Qualquer que seja a sentença deste tribunal, somos e seremos ativistas da independência galega …

—Já chega! É o suficiente! Com certeza! Outra mitin, não! Outro mitin, não!

Novo julgamento para louvar o terrorismo

Este é mais um dos numerosos julgamentos de entaltecemento do terrorismo que foram realizados na Corte espanhola nos últimos anos. Organizações como a Anistia Internacional advertiram sobre o uso abusivo de leis antiterrorismo na Espanha e também sobre a imprecisão dessas leis. Desde 2011  o número de condenados foi de 119, mais da metade entre 2016 e 2018. Dado que é especialmente surpreendente se considerarmos que a maioria das condenações foi feita em relação a quadrilhas armadas já dissolvidas.

De acordo com a Anistia Internacional, a glorificação deve ser reduzida apenas aos casos em que outras pessoas são encorajadas a cometer um crime reconhecível e com uma probabilidade razoável de o fazerem. Isso não foi visto em nenhum momento deste julgamento, onde, de feito, o grau de descrédito e extensão dos crimes a várias pessoas é notável. Na verdade, a acusação cita a jurisprudência da sentença contra a insurgência – que condenou doze rapeiros – para justificar que, na organização dum açao  na que a exaltação é cometida, seria tão criminoso falar quanto ajudar com os apetrechos e a organização.

O todo é ETA como filtro

Em 2015, o PP e o PSOE promovem uma reforma do código penal que, na opinião de alguns especialistas, banaliza o conceito de terrorismo e abre as portas para processar pessoas que não são terroristas por esse crime, o que torna o conceito tão vazio podendo ser confundido com distúrbios públicos, por exemplo. Por outras palavras, peenchido a vontade.

As diferenças entre sabotagem e terrorismo são cada vez menos levadas em consideração pelos juízes. Neste julgamento, não se fala em sabotagens ou atentados, mas apenas em crimes de opinião e na suposta vinculação das entidades com Resistência Galega numa rede que serviria para manter viva uma quadrilha armada à qual atribui cerca de sessenta de ações violentas, sem mortes e com explosivos caseiros, contra sedes de partidos políticos, instituições, bancos e empresas. Houve condenações por essas ações, mas o soberanismo galego defende que não está claro que podam ser atribuídas a uma organização armada já ninguém nunca as reclamou ou que podam ser consideradas terrorismo.

A estratégia judiciaria funciona tanto para criminalizar a luta de libertação independentista quanto  para deslegitimar toda forma de dissidência (desobediência civil, resistência não violenta, e ação direta), exagerando e muito no uso da violência, trocando feitos por palavras deturpadas, quando aquela não aparecer. Se não houver proporcionalidade, não há justiça.

Tratando a dissidência independentista como ‘‘terrorismo’’, o que realmente transparece é o absolutismo legal que faz de “o estado de direito” uma cilada para direitos fundamentais – incluindo a noção de que não há espaço para compromisso de consciência ou de solidariedade social com os presos- e da própria noção de política de ‘‘lei e ordem’’ como inerentemente favorável ao status quo,  até acabar confundido os limites entre  polícia e funções militares.

Agindo assim, uma audiência espanhola e um judiciário tão endogâmicos e politizados não são competentes para diferenciar opressores e oprimidos, formas de protesto e de dissidência que constituem formas de expressão política, de defensa de ser colectivo, de lingua e de cultura, que servem como progenitores de uma vida social e duma democracia real e duradoura. Espinosa recomendou “não rir das ações dos homens, não deplorá-los, apenas compreendê-los”. Juízes que insistem em julgar sem entender, é por isso que fazem análises ruins, é por isso que acabam-se enganando.

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